quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Café preto

A água na panela borbulhava raivosa. Ao longe as maritacas brigavam escandalosamente em torno de seus ninhos inacabados.  Suas mãos, já meio maltratadas pelo tempo, torciam as últimas roupas da bacia, seus ombros e costas doíam, mas ela deixara de se importar anos atrás. O cheiro do sabão lhe enjoava o estômago, porém, era necessário, tudo deveria estar impecável até a hora dele chegar...
Colocou o açúcar, o pó e enfim estava pronto mais um de tantos cafés, feitos exatamente às quatro da tarde, pontualmente, recorrentemente. O cheiro sempre despertava curiosidade, dizem que era sentido a quilômetros dali... Sua vizinha, ao voltar da novena, todas as terças-feiras, sempre comentava gentilmente “Nossa vizinha, que cheiro bom é esse?”, apesar de já saber, todas as vezes, que se tratava do café preto, amargo como a rotina que vivia.
Nesse dia, em específico, a vizinha praticamente convidou-se a entrar, não pelo café, é claro, o comentário dessa vez, ao contrário das outras vezes, só passava de um desculpa. O assunto que tinha ali era outro.
A vizinha começou uma conversa, nessa casa muito limpa, em meio ao cheiro do café, em uma determinada rua, como se começam todas as conversas em qualquer outra casa, de qualquer outra rua, mesmo que o café não fosse tão cheiroso como aquele. Disse que os dias andavam muito curtos, que já não havia mais tempo para os afazeres domésticos, que os tempos eram outros e que enfim, as mulheres não precisavam mais de seus maridos para viverem confortavelmente. Deveriam sim ir trabalhar, enfrentar o mundo lá fora e conquistar o que alguns chamam de independência.
Ela falava e repetia, como um rádio com defeito. Não se abalou com o olhar incomodado da anfitriã ao ouvir essas palavras, que a fizeram se lembrar de uma outra palavra que o padre usava com veemência aos domingos no ponto mais alto de seu sermão: blasfêmia. Como poderia uma mulher não receber seu marido em casa com menos do que roupas lavadas e passadas, um bom jantar e um cheiroso café?
Então, a vizinha avançou um pouco mais na conversa, que evoluiu de uma quase tese científica, dada a força que imprimiu a seus argumentos, para uma obesa fofoca. Para algumas pessoas falar da vida dos outros se torna uma arte muito prazerosa, para a vizinha essa prática social havia se tornado uma rotina, que ela repetidamente, ansiosamente, vivia.
A vizinha era uma solteirona. Dizem que quando jovem teve um grande amor, amava seu primo. Mas ele engravidou uma menina pobre, dessas criadas de fazenda grande, e teve que casar. Mudou de cidade e ela teve que conviver com esse amor rasgado, arrancado do peito, desde então. Dizem que quando não temos uma vida própria, encontramos conforto e emoção em novelas mexicanas, com seus dramas, choros e velas, e atrizes com uma quantidade excessiva de maquiagem. A vizinha sabia de tudo, tanto dos capítulos que já passaram quanto dos que viriam, tanto da novela quanto das vidas de todos naquele bairro, naquela pequena cidade interiorana, que todos os dias, às quatro horas em ponto, cheirava a café preto, forte como os braços das lavadeiras que torcem suas roupas.
Perguntou a dona de casa se ela conhecia bem as pessoas com que o marido dela trabalhava, perguntou se ela já tinha ouvido falar de uma tal Marta. Disse que nas rodinhas sociais do bairro não se falava em outra coisa: a Marta era amante de um homem casado. Disse que havia conversado com muitas mulheres ali do bairro sobre o assunto. Disse que não gostaria nem de imaginar o sofrimento de uma mulher que se descobrisse traída, ainda mais com mulherzinha de quinta categoria como a tal de Marta. "Marta”, disse a vizinha nervosamente, “nome de mulher desavergonhada!”.
A humilde dona de casa fez cara de quem realmente não fazia ideia do que a vizinha estava falando, muito menos do que pretendia com tudo aquilo... Que lógica havia em afirmar que o simples fato de uma mulher se chamar Marta já faz dela uma mulher desfrutável? Pergunta que a anfitriã, atenta às batidas cansadas do pêndulo do velho relógio da sala, logo ignorou. “Ele já deve estar chegando.”, pensou.
A mulher, farta de todo aquele falatório sem sentido, deixou a vizinha sozinha e foi por a mesa. Escutava a outra tagarelar incessantemente sobre uma camisa manchada de batom que foi achada na esquina de sua casa, do cheiro de papel velho que emanava de suas mangas compridas, que o tamanho da camisa condizia com a que um homem robusto usaria, alguém como o marido daquela dona de casa, por exemplo.
Enquanto isso, os garfos, ao encostarem nos copos de vidro, faziam um barulho engraçado, que fazia a mulher se lembrar de seus tempos de criança, quando ela sentava na soleira da porta da casa de seus pais, fechava os olhos e ouvia o apanhador de sonhos, apanhando os sonhos de tanta gente que vinham aos montes com o vento.
Lembrou de uma vez que saiu com seu marido e passou na feirinha. Viu um desses apanhadores de sonhos e pediu que ele comprasse pra ela, que ficaria muito feliz se pudesse fazer essa gentileza, mas ele disse que não, que era besteira e que ela não era mais menina nova pra ficar brincando. O incomum é que ela não se lembrou se ficou triste ou não quando ele disse aquilo. Dizem que o tempo cura todas as feridas, mas deixa as cicatrizes.
Ao longe já se ouvia o badalar do sino da Igreja, foi quando a vizinha tagarela e reumática, percebeu que já estava tarde e que o marido da anfitriã, não muito atenta às suas histórias, deveria estar pra chegar. Despediu-se rapidamente e virou a esquina sem olhar pra trás, ainda tinha muitas casas a visitar.
Já iam dar sete horas da noite e nada do marido chegar. “O que poderia ter acontecido? O cartório só fica a quatro quarteirões daqui...” pensou ela, já impaciente com a demora. O assado já esfriava em cima da mesa, o café aos poucos foi perdendo o seu cheiro forte, as roupas já não pareciam tão bem passadas.
Às sete e meia a dona de casa foi esperá-lo no portão, já imaginando que tragédia poderia ter acontecido. Então ouviu ao longe a voz do marido se despedindo de alguém. Enfim ele apareceu na rua, para o alívio de sua esposa, que o recebeu de braços abertos e com um sorriso aliviado no rosto. Perguntou o porquê da demora e de quem se despedia na esquina. Ele, aparentemente cansado respondeu furtivamente que hoje havia muito trabalho e que se despedia de um colega que vinha andando com ele.
O marido entrou apressadamente em casa e foi ao banheiro lavar as mãos para jantar. A mulher ainda ficou alguns minutos do lado de fora, admirando a lua que, na noite em questão, estava lindíssima. Dizem que se você olhar muito atentamente pra lua poderá ver São Jorge acenando pra você.
Dirigiu-se até a porta e, no momento em que estava prestes a fechá-la, sentiu um cheiro diferente. Perfume intenso e muito doce, como o cheiro das damas da noite em certas épocas do ano. Viu uma mulher bonita, de pernas e braços bem torneados, longo cabelo cacheado que caia sobre seu colo e costas. E que lindo vestido ela usava, um tecido bem leve, florido, que parecia cumprimentar a rua quando o vento o levantava.
Lembrou-se então de Marta. “Poderia ser a Marta, não poderia?”. Sentiu que não haveria homem que não se encantasse com ela. Imaginou que seu marido provavelmente ficaria tentado a sentir outro cheiro que não o do café, que às quatro da tarde, invadia as casas e praças, sem pedir licença, e levava com ele os suspiros das moçinhas apaixonadas.
Sentiu, de repente, um desejo de liberdade. Depois do jantar daquela noite e nos dias que se passaram, esse sentimento só crescia dentro dela. Mais uma Amélia que abrira mão de sua vida por seu marido, mais uma Amélia que diria sim para tudo que ele pedisse sem pestanejar e que agora imaginava uma vida fora daqueles portões cor de bronze que, inclusive, harmonizavam muito bem com as margaridas plantadas no pequeno jardim.
Depois de muitas terças-feiras sem parar para conversar, em uma tarde qualquer, de um dia qualquer, naquela determinada cidade, a vizinha novamente convidou-se a entrar, dessa vez, pelo silêncio incômodo que partia da casa. Chamou a mulher, a coitada, a traída, que parecia nem desconfiar de nada, mas ela não respondeu. O portão estava aberto. A curiosidade devorava suas entranhas. Tinha que entrar e ver o que estava acontecendo. Se alguém a repreendesse ela diria que entrou na casa sem ser convidada por preocupação. Dizem que as mentiras têm pernas curtas e cabeludas.
O som do nada continuava a incomodar os ouvidos da vizinha, muito mais acostumada com as algazarras da feira, da igreja e da mercearia, e as vezes com a algazarra provocada por sua própria voz, dentro de sua cabeça. A mesa não estava posta, as roupas estavam jogadas pela casa e o café... não, não havia café. A vizinha ficou com aquela cara muito típica daquele tipo específico de pessoa que acredita que sabe de tudo, mas repentinamente se depara com algo que não entende. “Onde estava aquela mulher afinal?”, pensou.
A mulher se foi, assim como se foram as fofocas a seu respeito depois de alguns meses que desapareceu, assim como se foram as esperanças de seu marido de um dia encontrá-la e tentar entender o que houve, assim como se foi o cheiro de café que habitava a cidade. 
Dizem que a mulher se tornou uma linda borboleta, daquelas que os amantes sentem no estômago sempre que se beijam ardentemente.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O caso do porta-malas

Sua cabeça latejava e lentamente ela foi abrindo os seus olhos. Após alguns segundos em que eles se acostumavam com a luz, apesar de pouca, ela se deu conta de que estava dentro de um porta-malas. Suas mãos e pernas estavam amarrados, havia uma venda em sua boca e cada osso de seu corpo doía como se pudessem se partir a qualquer momento. Após o sentimento de estranheza, um desespero tomou conta de sua alma, ela não fazia ideia de como tinha parado ali... queria gritar mas não podia, queria se mover mais estava presa, clautrofobicamente enclausurada em um porta-malas.

Ela podia ouvir a leve chuva que caía e ao longe o pavoroso grito de uma cigarra prestes a morrer. Sentia que passava por cima de uma estrada, provavelmente de chão, dado o cheiro de poeira e os estrondos repicados que as pedrinhas provocavam bem abaixo dela. 

Então, a pouca luz, que ainda passava pelas frestas da abertura de sua prisão, foi se apagando e ela começou a imaginar que horas seriam e se talvez alguém estaria procurando por ela. Talvez... talvez a senhora, síndica do prédio em que morava, afinal o aluguel do apartamento estava atrasado três meses, ou talvez a sua gata Marrie, que provavelmente estaria com fome, mas não, os gatos são independentes, ela pensou, Marrie deve estar procurando comida do lado de fora, apesar de não se lembrar se a janela ficara aberta ou fechada. Talvez alguém tivesse visto o que houve com ela, uma testemunha, e tivesse chamado a polícia, alguém de seu bairro que não tivesse medo dos traficantes ou dos assassinos que habitavam a região, alguém corajoso, como um príncipe encantado...

Porém, em meio a seus devaneios sem sentido, o carro parou abruptamente, ela sentiu a mudança do solo, andavam agora sobre o asfalto e o som de uma buzina, simplesmente ensurdecedor, fez com que ela se lembrasse da sua trágica situação. Pensou no trânsito, pensou que se talvez houvesse um acidente com o carro em que estava, que ela ficaria bem, talvez matasse o motorista, ou o ferisse, e quando a polícia chegasse ao local abririam o porta-malas e ela finalmente respiraria, mesmo que fosse por alguns instantes. Mas não, o carro continuou sua viagem, levando consigo os desesperos e esperanças de alguém, presa no porta-malas. 

Quando pequena, tinha o costume de questionar o porquê do nome das coisas, desafios etimológicos que a surpreendiam. Porta-malas era uma palavra muito simples, pois simplesmente nomeava um compartimento do carro que servia para guardar malas, mas não só malas, sacolas, instrumentos de trabalho, as compras do supermercado... e, atualmente, pessoas.

Havia um revólver carregado no banco do passageiro. As mãos do motorista estavam suadas, isso indicava seu nervosismo, não porque havia uma garota presa no porta-malas, mas porque se ele tivesse sofrido um acidente teria de pagar o prejuízo pelos concertos daquele carro, que não era dele. Mais prejuízos!!! Já não bastava os remédios que tinha que comprar pra sua filha aidética de cinco anos, como se não bastasse ter que trabalhar 14 horas por dia em uma fábrica de refrigerantes e ganhar quase nada de salário, como se não passasse as 10 horas que lhe restavam por dia praguejando contra a mãe da menina, que além de transmitir AIDS a própria filha durante a amamentação, ainda os abandonou.

Os médicos do hospital público disseram que o Brasil é um dos países mais avançados na disponibilização gratuita do coquetel, mas sempre que chegava aos postos de entrega, eles já tinham acabado. Às vezes conseguia um ou dois, mais não todos eles. É muito triste para um pai pobre, morador de periferia, que trabalha como um condenado, ter que ver sua própria filha morrer e não poder fazer nada. Mas dessa vez não, dessa vez com o dinheiro do sequestro eles iriam se mudar, ele iria abrir um comércio, mudar de nome e esquecer do passado. Preferiu nem olhar o rosto da garota no porta-malas, simplesmente o mandaram levá-la até o local combinado, simplesmente entrou no carro e dirigiu, a menina já estava lá, se a polícia o questionasse, diria que não sabia de nada, que era um trabalhador e não um bandido.

Apesar da hipocrisia, no fundo ele sabia que mesmo depois de pegar a sua parte, a menina não sobreviveria, mas como não seria ele o seu executor, como não participaria de seu calvário diretamente, preenchia a sua consciência com o pensamento de que a culpa não seria dele... quando adolescente ouvira alguém dizer que se alcançados os fins, os meios não importavam... ele considerava-se um meio.

A garota permanecia insolentemente pensativa. Nunca havia sido alguém que tomasse grandes decisões e quando as tomou se arrependeu. Nunca foi alguém forte, decidida, alguém que pudesse se salvar ou salvar alguém... ela tinha o costume de fugir. Tinha uma família abastada, de muitas posses, mas não suportava mais as cobranças de seus pais: seja mais simpática, estude mais, encontre um bom partido, faça faculdade de medicina, seja bonita, seja alguém.

Pelo costume de fugir das pressões que eventualmente surgissem, jamais teve muitos amigos, o mais próximo disso era algum vizinho que lhe emprestava uma xícara de açúcar, hábito de pedir que ela desenvolveu não porque faria efetivamente algum doce, mas simplesmente para ter algum tipo de contato com alguém. Na verdade, fez coleções de xícaras de todas as formas e tamanhos, e ao olhar para cada uma delas se lembrava das mãos gentis que entregavam o açúcar com gosto. Os invejava, os invejava tão fortemente que às vezes fingia ser um deles, sozinha em casa, se deparando com o olhar desconfiado de Marrie.

De repente, lembrou que uma vez assistiu a um desses seriados policiais, em que as vítimas de sequestro, quando dentro do porta-malas, conseguiam escapar chutando a maquinaria que envolvia os faróis traseiros. Pela primeira vez, tomou coragem e deu o primeiro chute, ainda muito leve e medroso. O segundo, já mais forte, começou a mover a peça, o terceiro a abriu e o quarto a arrancou com força da traseira do carro.

Enfim!!! Enfim o ar entrava e preenchia seus pulmões, muito fracos, quase sem vida ou esperança. Seus olhos arderam com a luz que os faróis coloridos que inundavam a via asfáltica provocavam.Ouviu algumas pessoas gritando, dizendo que havia um pé do lado de fora do porta-malas. Ao mesmo tempo o carro acelerou por alguns momentos, subitamente virou a direita, e parou no acostamento de uma estrada deserta, logo ao lado da rodovia, dessa vez, definitivamente.

O motorista desceu, desesperadamente checou se o revólver estava carregado, três vezes, suas mãos tremiam, seu coração explodia, seu cérebro fumegava por dentro, criando uma sensação insuportável. Pensou em fugir, pensou em gritar, pedir perdão, mas pensou em sua filha, pensou nos remédios e pensou na nova vida que ele havia sonhado pra si. Sabia que se fosse preso sua filha ficaria sozinha e morreria. Tomou coragem e dirigiu-se ao porta-malas. Viu o pé da moça pra fora, a primeira parte de seu corpo que ele viu, pensou que agora não haveria mais volta, não haveria mais escapatória, teria que matá-la.

A moça chorava e se lamentava por ter feito aquilo, sabia que se o motorista abrisse o porta-malas não haveria mais volta, não haveria escapatória, morreria, ali mesmo naquela beira de estrada.

O motorista abriu lentamente o porta-malas, já se sentindo um assassino, já se sentindo um pecador, condenado por Deus, que jamais conseguiria esquecer aquele horrível pecado. A moça já se preparava para o inevitável, de certa forma entendia que racionalmente matá-la seria o melhor a fazer, sabia que somente um milagre a salvaria. 

Quando o motorista olhou em seus olhos, já não parecia mais humano, apenas um assassino, sem nome, sem família, sem esperanças, a moça olhou de volta, sucumbindo àquele olhar gélido, imaginando aonde iria quando tudo aquilo acabasse.

Então, finalmente, um tiro. Um único tiro, seco e destruidor, apenas mais um som em meio ao caos do trânsito, que parecia ignorar os acontecimentos às margens de si, como uma máquina independente, feita de engrenagens frias e não pessoas. A moça fechou os olhos lentamente e já podia sentir o ardor do sangue pulsando lentamente pra fora de seu corpo, através de um buraco exatamente no meio de seu peito, e então, por incrível que pareça, se sentiu bem, sentiu a sua solidão, as suas mágoas indo embora junto com aquele fluido de vida. Lembrou de Marrie e percebeu que ela merecia alguém melhor que cuidasse dela, que fizesse mais carinho. Lembrou da síndica que provavelmente se aborreceria quando soubesse de sua morte, quanto dinheiro perdido! Percebeu que as xícaras não passavam de objetos inanimados, sentiu-se patética, porém, reconheceu em seu assassino, finalmente, um amigo. Um amigo que a livrou de sua infelicidade. 

Dizem que a cada vez que uma pessoa mata outra, é um pedaço de sua alma que vai junto com ela. Dizem que ninguém esquece o rosto daqueles infelizes que tiveram o seu bem mais precioso arrancado violentamente de si. Dizem que um assassino jamais se perdoa por continuar vivendo. Fim.
     

terça-feira, 20 de março de 2012

A Menina e a Rosa

Passava todos os dias, sempre muito apressada. Os rapazes, que já sabiam mais ou menos o horário em que ela passava ficavam ali sentados na porta, conversando, rindo e esperando. A vida dela tinha um quê de misticismo, apesar de todos conhecerem seu irmão ela mesmo só falava com algumas pessoas, muito específicas.

Não era como as outras meninas do bairro, que paravam para conversar com Deus e todo mundo. Às vezes, parecia que ela não podia parar ou tinha medo de olhar nos olhos dos outros, dos desconhecidos que ela encontrava todos os dias.

Nesse dia, ela se atrasou. Cerca de meia hora. Os rapazes já começavam a pensar que este era um daqueles dias em que ela não passava ali, muito raros na verdade. Foram recolhendo as cadeiras, jogando fora as latinhas de cerveja e também as últimas palavras. Até que, de repente, ela apareceu na esquina... com o mesmo jeito de andar, com os olhos fixos e determinados, o cabelo sempre solto, balançando conforme a brisa que sempre estava ali para lhe dar as boas vindas. Era incrível como o vento sabia a hora certa de bater nos seus cabelos, como os carros sabiam a hora exata de não passar para que ela pudesse caminhar entre as ruas, como o sol batia em seu rosto e deixava suas bochechas rosadas, como suas mãos delicadas tiravam a franja de seus olhos e voltavam ao seu lugar lentamente...

 Os rapazes, não se enganem, estavam ali para admirar e fazer uma das brincadeiras que mais gostavam: ver se conseguiam tirar alguma palavra de sua boca, mesmo que fosse a mais brava ou seca. Era tão raro ouvirem a voz da menina, tão raro que ela olhasse para eles, mesmo pelo canto dos olhos... Por isso, investiam em cantadas das mais variadas: "Você vem sempre aqui?", "Me dá uma chance!", "Quando você caiu do céu se machucou muito?" ou os tradicionais "Oi!" e "Oi gatinha!"... Era o máximo de criatividade que eles tinham e acreditavam realmente que poderiam alcançar seus objetivos com esse tipo de comportamento. Afinal, os meninos de 19 anos se acham irresistíveis!!

Mas nesse dia, como que por milagre, ficaram calados, mudos, quietos, apenas admirando a menina que passava. A menina segurava uma rosa carmim, que batia exatamente com o tom de batom que estava usando. Quem olhasse pra ela veria um quadro em preto e branco, com um forte tom de vermelho na rosa e na boca. 

Ela teria ganhado a flor de alguém especial? Talvez um namorado ou pretendente que, como eles, também ficava olhando ela passar, em uma outra rua, outra esquina, e tivesse enfim conseguido tirar algumas palavras de sua boca? Talvez ela daria o presente a alguém? Sua mãe? Uma amiga?

E foi com esses pensamentos que os rapazes ficaram estáticos em cima da calçada, como observadores de pássaros que só olham de longe e não podem fazer movimentos bruscos, pois correm o risco de perder a maestria do que veem em segundos.

Eles esqueceram do apelo sexual que antes os movia, não ficaram comentando sobre suas curvas, pernas, seios... a admiraram, pela primeira vez, talvez pelo que ela realmente era, sentiram como se a conhecessem há muito tempo, como se soubessem de seus segredos mais íntimos, como se pudessem pegar nas mãos da menina e andar por aí, sem um destino certo...

Neste dia, a menina tinha um leve sorriso no canto da boca e ao notar o silêncio incomum que vinha do outro lado da rua, olhou para os rapazes e pensou por um momento que talvez pudesse, pela primeira vez, olhar em seus olhos ou dizer algo... sentiu uma certa confiança, mas logo seu recato falou mais alto, então ela olhou pra frente e seguiu seu caminho, não se sabe para onde.


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Você já tomou banho de chuva?

Não um daqueles banhos horríveis, banhos de tempestade com raios e trovões... Ventos de não sei quantos quilômetros por hora que parecem te levantar do chão e que enchem as suas vestes de poeira... mas um banho de chuva daquele tipo de chuva que chove quando ainda tem sol, daquele tipo de chuva em que as gotas te atingem com todo o respeito e simpatia, aquele que molha levemente os seus cabelos e as suas roupas...

Eu tomei um banho assim hoje e, francamente, foi revigorante! Me lembrei dos meus tempos de criança em que uma chuva assim era nada mais que uma festa, em que eu pulava nas poças d'agua, corria, me escondia, olhava pra cima e pensava "uau!!" simplesmente por estar vivendo aquele momento... imaginem a minha felicidade quando chovia granizo... simplesmente grande acontecimento do dia!

Não importava a poluição ou a contaminação que podia emanar dos gases tóxicos que hoje habitam o céu, não importava o resfriado que eu provavelmente teria depois, nem as roupas molhadas ou as manchas que eu faria no tapete ao entrar em casa... naquele momento tudo que importava eram as sensações, as gotas caindo em minha cabeça e a visão maravilhosa da natureza se manifestando de uma forma tão simples e comum. 

Me dei conta de como sou pequena, de como sou fraca, de como não tenho controle sobre as coisas, de como o mundo gira, funciona e se manifesta independentemente da minha vontade, do meu estado de espírito, dos meus problemas e pensamentos. Ele simplesmente está lá, estrutura espacial, imerso no vácuo de um universo gigantesco, controlado por forças siderais invisíveis e ao mesmo tempo tão reais. Acho que é por isso que os escritores da bíblia valorizavam tanto a humildade e condenavam a ambição, pois independentemente de qualquer conhecimento científico ou religioso, quando nos sentimos pequenos temos a chance de sermos melhores, de enxergar as coisas por outro ângulo, de valorizar nossas bases e fundações e de olhar pra cima tomando conhecimento da imensidão acima de nós e ter dentro de si a mais vasta esperança.

Hoje eu tomei um banho de chuva...

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Smile Like you mean it

Gente, amo essa música... acho que se prestarmos atenção na letra é um tipo de lição de vida que devíamos absorver... so enjoy it!




Smile Like You Mean ItThe Killers
Save some face, you know you've only got oneChange your ways while you're youngBoy, one day you'll be a manOh girl, he'll help you understand Smile like you mean itSmile like you mean it 
Looking back at sunsets on the EastsideWe lost track of the timeDreams aren't what they used to beSomethings set by so carelessly 
Smile like you mean itSmile like you mean it 
And someone is calling my nameFrom the back of the restaurantAnd someone is playing a gameIn the house that I grew up inAnd someone will drive her aroundDown the same streets that I didOn the same streets that I did 
Smile like you mean itSmile like you mean itSmile like you mean itSmile like you mean it 
Oh no, oh no no noOh no, oh no no no 
kisses :)

Conformismos

Na física aprendemos que todos os corpos tendem a alcançar um movimento uniforme, todos os corpos buscam a estabilidade, o equilíbrio de forças... o que é isso? A providência divina? Alguém tentando nos ensinar uma lição? Simples coincidência?

Quem disse que porque as coisas são como são, assim devem continuar? Por que temos medo da mudança? Do que virá no futuro? Por que temos medo do que não conhecemos? Medo de não conseguir se adaptar? Em que momento somos levados a deixar de lado nossos impulsos, nossa curiosidade, nossas paixões, desejos, simplesmente para manter aquela velha e mórbida harmonia de sempre... Quando foi que nos conformamos a viver como vivemos?

Não é uma questão de lembrar de anarquistas ou comunistas, pois eu não falo aqui no sentido político, falo no sentido humano, no sentido das ideias loucas que preenchem nossas cabeças, com as quais sonhamos a noite, das quais falamos em poesias e que expressamos em músicas, fotos e pinturas... Falo daquela essência, falo daqueles momentos em que você se dá conta de que é tão dependente de alguém que fala até consigo mesmo!

Ao questionar meu irmão sobre uma briga com a minha mãe, a um tempo atrás, eu perguntei a ele: "Por que tem que ser assim?" e ele respondeu: "Você conhece a minha mãe, ela é assim mesmo... conversa logo com ela e resolve isso!". Em que medida a relação entre pais e filhos se torna uma prisão moral ou uma república? O que leva algumas pessoas a acharem, a realmente acreditarem, que são capazes de moldar outras? Que um filho nada mais é do que a continuação de si próprio, mas um eu que ainda pode ser modificado para que outras oportunidades surjam, outra vida se desenvolva a partir daquele ponto... Será sua forma de buscar a eternidade?

Loucos, piores ainda são aqueles que não assumem que o são... Loucos de pensar que por um segundo sua consciência permanecerá naquela pessoa depois da morte... Loucos de imaginar uma vida dedicada a grande causa de recriar seu próprio eu... Loucos por não perceberem as individualidades de seus filhos... Loucos por não ouvi-los, não falar com eles e até mesmo por não enxergá-los como são! Loucos por amarem demais...

Não digo que isso seja certo ou errado, eu não posso saber como é ser mãe, pois sou filha e enxergo as coisas, obviamente, segundo minha própria perspectiva, distorcida por tudo o que quis fazer e um dia ela me impediu, por tudo que eu quis ser e ela não deixou, pelos vários nãos que já escutei... Louca sou eu de perdoar isso tudo com um simples abraço, louca sou eu por pensar em algum momento que ela não pensa verdadeiramente em mim, louca por pensar que eu posso fazer tudo, bastando a liberdade tão sonhada...

Acho que os filhos de pais superprotetores se sentem como os Elefantes circenses, aqueles que são pegos desde pequenos e amarrados em um toco de madeira. Enquanto são pequenos tentam escapar, mas o toco e as cordas são fortes o suficiente para prendê-los, quando crescem ficam fortes, enormes, poderiam facilmente partir as cordas, arrancar o toco do solo e fugir dali, mas aprenderam desde pequenos que não são capazes e acreditam tanto nisso que passam o resto de seus dias ali, sempre ligados ao circo que os alimenta, os limpa, os da trabalho e os prende pelos pés. 

Chamem Hermes para instalar asas em seus pés! Chamem Hércules para arrebentar as cordas! Chamem Zeus para destruir as armadilhas! Mas depois que fugir encare a vida que tiver, sem pestanejar, aguente as consequências das suas escolhas, lembrando que por mais que você ame o circo e se sinta seguro, sempre há o risco de ficar preso pra sempre!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Desentendimentos

Muitas vezes sabemos com exatidão o momento em que uma briga começa... uma palavra rude, um gesto obsceno, um olhar furtivo, até mesmo um esbarrão... mas enquanto os envolvidos não se perdoam essa briga pode durar uma eternidade, ao ponto de depois de muito tempo eles nem se lembrarem o porquê da briga, mantendo-se apenas aquele sentimento de coisa mal resolvida. Esse sentimento nos impede de ligar para a pessoa mesmo quando sentimos a sua falta, nos impede de cumprimentá-la quando a encontramos na rua, nos impede de olhar nos seus olhos quando ela nos pede... é esse sentimento que nos faz desligar o celular quando vemos que essa pessoa nos liga.

Mas será que em todas as ocasiões um simples "me desculpe!" é suficiente?? Será que isso basta para eliminar de uma vez por todas todo aquele sentimento guardado as vezes por uma eternidade?? Acho que a diferença é que quando nos importamos de verdade com a pessoa com a qual brigamos, nos sentimos muito mais feridos, muito mais machucados e injustiçados, do que quando brigamos com um desconhecido ou com alguém que não gostamos... Ao misturarmos o amor que sentimos por essa outra pessoa com a raiva ou até mesmo com o ódio que ela nos desperta a situação fica mesmo insustentável e acabamos fazendo uma besteira...

Ou perdemos a relação com essa pessoa de uma vez por todas ou a perdoamos com palavras só para manter a relação, mas todas as vezes que a olharmos lembraremos de tudo que ela nos fez e algum dia o rancor será tão grande que acabaremos nos afastando por completo...

A ideia de perdoar verdadeiramente torna-se um tanto quanto insustentável nessas ocasiões, pelo menos pra mim tem sido assim... Como posso eu amar tanto e depois simplesmente esquecer que a pessoa existe? Com a mesma facilidade que eu amo alguém eu posso odiar essa pessoa... e eu me sinto horrível por isso... a minha vida tem sido um aprendizado de como perdoar e a única maneira que eu tenho encontrado é esquecer!

Minha mãe sempre me ensinou que não importa a ocasião devemos sempre manter o mínimo de educação... mas isso de certa forma não é falsidade pura e simples? Você está morrendo de raiva por dentro e não pode dizer nada em tom muito exaltado para que seja mantido o mínimo de sua educação? Que tipo de efeito psíquico e físico isso produz ao longo dos anos? Amargura!!! 

Depois de um certo tempo aguentando muitas coisas calada, enfim resolvi que quero tirar da minha vida uma pessoa com a qual compartilhei bons e maus momentos, uma pessoa que eu ajudei quando precisou de mim, que eu aconselhei mesmo quando não me pediu e as vezes nem gostou, uma pessoa que eu costumava chamar de uma das minhas melhores amigas... Eu sei que não sou perfeita e eu nem gostaria de sê-lo, mas é justamente pela minha humanidade, dignidade e pelos meus vários defeitos que eu não me submeterei mais a boa e velha educação simplesmente para manter as aparências de algo que não mais existe... não mais existe pelo menos por enquanto...

Eu chorei por uma hora seguida enquanto desfazia as malas, e mesmo não estando aonde queria estar fiquei imaginando como seria se nada disso tivesse acontecido... podem me chamar de dramática, de louca, de exagerada, podem dizer que a culpa não foi de ninguém e que foi de todo mundo, só eu sei o que senti naquele momento e agora eu me sinto mais forte! 

Feliz Ano novo!