No calor escaldante de setembro voltávamos
do trabalho, da escola, de uma visita ou do shopping, sei lá... todos sentados dentro de
um ônibus desses mais novos que tem andado por Goiânia, em comparação aos
antigos, que mais parecem dinossauros.
Em uma das várias paradas que o ônibus fez
entrou um garotinho com no máximo sete anos, com as roupas sujas e um cheiro
horrível, entregando um papelzinho que, particularmente, eu já tinha lido em
azul, amarelo, branco, verde e rosa, todos entregues das mãos de meninos idênticos a ele, pedindo ajuda para seus cinco irmãos e dizendo que é melhor pedir do que
roubar. Eu e todas essas pessoas desconhecidas, que habitavam momentaneamente a
condução, paramos, por alguns instantes, de pensar em nossas vidas para observar
o garotinho. Uns diziam baixinho "pobrezinho, será se os pais dele não têm
vergonha de deixá-lo na rua pedindo desse jeito?", outros já exclamavam
"você devia estar na escola!" e uma senhora de idade resmungou
"vou começar a pedir também, aposto que ele ganha por mês mais do que eu
ganho de aposentadoria!". Já eu pensava que muito provavelmente se ele
voltasse pra casa sem nenhum trocado apanharia dos pais ou de quem quer que
"cuidasse" dele. Resolvi dar uns trocados, assim como muitas pessoas
também o fizeram, com reclamações contidas, é claro.
O garotinho recolheu os papéis agradecendo
a todos que lhe haviam dado alguma coisa, invocando o nome de Deus e de todos os anjos e santos, amaldiçoando, por outro lado, os "pão-duros", como ele
mesmo os intitulou.
Cerca de 10 minutos depois, continuava a
viagem, que já parecia interminável. Eu fitava uma senhora que balançava um
leque velho freneticamente, como se daquilo dependesse a sua vida, esbaforida, avermelhada, assim como o
jovem que sentava ao seu lado e se aproveitava do pouco vento que lhe sobrava
daquela manobra eólica. Lembrei da minha avó, que morou um tempo na Itália e que, em
uma das vezes em que veio ao Brasil visitar a família exibiu orgulhosamente
seus três leques espanhóis belíssimos, coloridos, com aplicações em renda preta
e branca nas extremidades, que hoje jazem na gaveta da cômoda, esquecidos.
Então, interrompendo a minha lembrança, entrou
aquele homem, com olhos pretos esbugalhados, negros como a noite, feições rudes
e sofridas, rugas profundas, muito magro, debilitado, vestindo-se como um
mendigo, portando uma sacola suja e um chapéu gasto. De súbito todos começaram
a observá-lo disfarçadamente, assim meio de rabo de olho, esperando se ele apenas
se sentaria como todo mundo ou se teria uma reação inesperada. Ah,
como tememos a loucura alheia! É a ditadura da normalidade! Embora sejamos
todos loucos de alguma forma... bando de sacripantas!
O clima dentro do ônibus começava a ficar
ainda mais tenso, além dos ânimos exaltados por causa do calor e da ansiedade
de chegar cada um a seu destino, ainda tínhamos que conviver por alguns
instantes com a desconfiança em relação às intenções daquele sujeito, preto,
pobre, velho, marginalizado que representava uma "grande ameaça a nossas
vidas".
De repente ele jogou a sacola
violentamente no meio do corredor, jogou também o chapéu velho num canto, abriu
os botões da camisa num vulto e começou a bater repetidamente no peito com os punhos
fechados e a andar de um lado para o outro dentro do ônibus.
Todos olhavam abismados, tentando entender
o que ele dizia. Mas era inútil, ele apenas continuava a andar de um lado para
o outro repetindo os movimentos, pisando nos mesmo lugares e olhando para cima. Golpeava tão pesadamente o seu peito que o barulho ecoava em nossos ouvidos, como o som de um coração que, apesar de velho, ainda insiste em bater.
Passado o susto inicial, mais uma vez pude ver a incrível capacidade
que os seres humanos têm de se adaptar. Logo estavam todos pensando novamente em
suas vidas, ignorando a aflição que trespassava pelos olhos daquele homem,
indignado com alguma coisa que as suas palavras balbuciadas confusamente não
permitiam o correto entendimento. O que importava pra mim é que ele estava
revoltado, transtornado e ninguém naquele ônibus parecia se importar. Eram seus gritos silenciosos que ressonavam em minha mente e eu nada podia fazer, ou pelo menos não
havia nada em que eu conseguisse pensar em fazer naquele momento.
Aonde foi
parar o respeito, a dignidade, a solidariedade e a fraternidade? Por que
ignorar alguém que claramente precisa de ajuda? Será que a sua insensatez
advinha da fome, do álcool, de alguma droga, de uma perda irreparável ou da
miséria de sua vida, da falta de um teto para se proteger, de uma família?
Cerca de quatro pontos depois, ele
recolheu seus pertences e desceu do ônibus calmamente, como se nada tivesse
acontecido. A sua indignação grotesca cessou como mágica e a raiva que outrora estampava em seus olhos foi trocada pela tristeza, que arqueou dolorosamente os seus ombros.
Saiu daquele ônibus derrotado, acho que por ninguém ter escutado nada do que
ele disse, naquela sua linguagem diferente de quem vive pelas ruas, naquele seu
mundo habitado por monstros e fantasmas.
Não sei o que houve com ele, não sei se
está vivo ou morto. Nunca mais o vi. Mas aqueles olhos pretos, sofridos, jamais
deixaram os meus pensamentos. Aquele homem louco, como alguns podem achar, me ensinou
muito mais sobre humanidade do que qualquer livro ou teoria que eu já tenha
lido ou conhecido. A este homem eu ofereço um muito obrigado!
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