quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Meninas malvadas

Eu, como a maioria das pessoas, sofri bullying na escola. Não digo que a minha vida foi arruinada por causa disso ou que sou uma pessoa traumatizada, mas com certeza foi necessário muito amor próprio e muito apoio dos meus pais e amigos pra eu superar essa situação e me aceitar como sou sem me importar com julgamentos maldosos.
Hoje assisti a um filme chamado "A girl like her" (uma garota como ela) que retrata uma história real, filmada no estilo de documentário em 2015, de como o bullying pode ter consequências terríveis tanto na vida da vítima quanto, pasmem, na vida do agressor.
A história de Jessica Burns e Avery Keller retrata uma relação destrutiva e opressora que surgiu entre as duas numa típica escola de ensino médio norte-americana, com aquela velha doutrina dos vencedores e perdedores num nível master!!
A baixa auto-estima e a insegurança de Jessica não permitem que ela reaja de alguma forma, ou que conte a alguém, e a necessidade de controle que Avery tem a leva a aterrorizar a menina e viver em um universo em que até mesmo suas "amigas" são oprimidas por ela.
O que chama a atenção, com certeza, é o impacto que essa relação tem sobre a vida das duas e de todos os outros colegas, a omissão destes em tomar alguma atitude diante dos abusos presenciados e a falta de diálogo com os pais e com a escola: eles ignoram totalmente a situação pela qual elas passam e, quando finalmente descobrem, se assustam e se veem perdidos, sem saber lidar com algo tão sério.
Falando de forma geral é uma situação muito comum nas escolas, o que não significa que seja normal, e não vemos muito empenho nos adultos pra tentar ajudar as crianças e adolescentes que passam por isso... Muitas vezes o conselho que oferecem é: não liga pra isso, logo ela vai parar, esquece isso, ignora! E a justificativa do agressor é: ah ela não consegue aguentar uma piada?
Mas para uma criança ou adolescente cuja coisa mais importante na vida é ser aceito pelos outros, é descobrir a que mundo pertence, isso não basta!!
Em um trecho do filme, um pai durante um conselho escolar diz uma frase emblemática para se encontrar uma solução para o problema: uma pessoa ferida fere os outros. O que faz com que uma menina bonita, rica, que tem tudo o que quer e é muito popular seja cruel com outra garota ao ponto dela se atirar no fundo do posso? A resposta é que talvez a vida dela não seja tão perfeita assim e ela acaba usando o bullying como válvula de escape pras suas próprias inseguranças, revoltas e medos.
Garotas, falo delas por não conhecer muito bem o universo masculino neste assunto, parece que se envolvem em teias de competição na escola, no trabalho e dentro de quase todas as suas relações. Quando uma menina passa por um grupo de garotas, se for muito bonita vão falar mal dela por inveja, se for bem relacionada vão dizer que é falsa, se for muito feia, gorda, aí nem se fala, acabam com ela, se a roupa estiver inadequada, também vão falar mal. Mas afinal de contas: quem inventou esse padrão? Resposta: as próprias mulheres. Então a conclusão é que estamos nos prendendo nas correntes que forjamos e achamos isso certo!!
Que absurdo pensar que somos maravilhosas o suficiente pra julgar os outros, pra dizer aos outros o que vestir e como se comportar, desconsiderando o que o outro pensa e sente apenas para satisfazer um prazer pessoal de desfazer.
O bullying é, pra mim, não só uma crueldade que pode chegar aos extremos que vemos nos filmes e na vida real, indo do suicídio aos massacres em escolas, mas uma clara omissão da sociedade em relação ao que os jovens e crianças pensam e sentem diante das pressões que recebem todos os dias e que os levam a degladiar-se entre eles. Além disso, por onde anda aquela ideia de que devemos assumir os nossos erros? Passar a mão na cabeça de uma criança que agride a outra na escola vai ajudá-la em quê? Pode ser que a escola e os pais não percebam, mas a lição que essa atitude passa é a de que está tudo bem fazer o outro sofrer e gostar disso, está tudo bem não pensar antes de fazer, não assumir as consequências, só que essas consequências aparecem cedo ou tarde, de uma forma ou de outra, originando, muitas vezes, adultos piores ainda que vão criar seus filhos de forma mais negligente e assim continuar o ciclo de violência. Essa violência que não deixa marcas na pele, mas na alma.
Depois de ver esse filme eu entendi que as minhas agressoras também eram vítimas como eu e, apesar de não ter sido correto o que fizeram comigo, as maiores culpadas não foram elas. Pode ser que elas nem se lembrem que fizeram isso comigo, talvez não tenha tido a menor importância em suas vidas, talvez tenham crescido, amadurecido e se tornaram boas pessoas, e hoje eu sei que ja as perdoei por tudo, só peço a quem esteja lendo esse texto que reflita sobre como tem lidado com essas situações, se tem tido diálogo em suas famílias, escolas e trabalho, o bullying está por toda parte: qual o seu papel nisso tudo, onde a sua carapuça vai servir?

Trailer: https://youtu.be/wfbFaHTCkP4

domingo, 19 de janeiro de 2014

Os olhos do louco

No calor escaldante de setembro voltávamos do trabalho, da escola, de uma visita ou do shopping, sei lá... todos sentados dentro de um ônibus desses mais novos que tem andado por Goiânia, em comparação aos antigos, que mais parecem dinossauros.
Em uma das várias paradas que o ônibus fez entrou um garotinho com no máximo sete anos, com as roupas sujas e um cheiro horrível, entregando um papelzinho que, particularmente, eu já tinha lido em azul, amarelo, branco, verde e rosa, todos entregues das mãos de meninos idênticos a ele, pedindo ajuda para seus cinco irmãos e dizendo que é melhor pedir do que roubar. Eu e todas essas pessoas desconhecidas, que habitavam momentaneamente a condução, paramos, por alguns instantes, de pensar em nossas vidas para observar o garotinho. Uns diziam baixinho "pobrezinho, será se os pais dele não têm vergonha de deixá-lo na rua pedindo desse jeito?", outros já exclamavam "você devia estar na escola!" e uma senhora de idade resmungou "vou começar a pedir também, aposto que ele ganha por mês mais do que eu ganho de aposentadoria!". Já eu pensava que muito provavelmente se ele voltasse pra casa sem nenhum trocado apanharia dos pais ou de quem quer que "cuidasse" dele. Resolvi dar uns trocados, assim como muitas pessoas também o fizeram, com reclamações contidas, é claro. 
O garotinho recolheu os papéis agradecendo a todos que lhe haviam dado alguma coisa, invocando o nome de Deus e de todos os anjos e santos, amaldiçoando, por outro lado, os "pão-duros", como ele mesmo os intitulou. 
Cerca de 10 minutos depois, continuava a viagem, que já parecia interminável. Eu fitava uma senhora que balançava um leque velho freneticamente, como se daquilo dependesse a sua vida, esbaforida, avermelhada, assim como o jovem que sentava ao seu lado e se aproveitava do pouco vento que lhe sobrava daquela manobra eólica. Lembrei da minha avó, que morou um tempo na Itália e que, em uma das vezes em que veio ao Brasil visitar a família exibiu orgulhosamente seus três leques espanhóis belíssimos, coloridos, com aplicações em renda preta e branca nas extremidades, que hoje jazem na gaveta da cômoda, esquecidos.
Então, interrompendo a minha lembrança, entrou aquele homem, com olhos pretos esbugalhados, negros como a noite, feições rudes e sofridas, rugas profundas, muito magro, debilitado, vestindo-se como um mendigo, portando uma sacola suja e um chapéu gasto. De súbito todos começaram a observá-lo disfarçadamente, assim meio de rabo de olho, esperando se ele apenas se sentaria como todo mundo ou se teria uma reação inesperada. Ah, como tememos a loucura alheia! É a ditadura da normalidade! Embora sejamos todos loucos de alguma forma... bando de sacripantas!
O clima dentro do ônibus começava a ficar ainda mais tenso, além dos ânimos exaltados por causa do calor e da ansiedade de chegar cada um a seu destino, ainda tínhamos que conviver por alguns instantes com a desconfiança em relação às intenções daquele sujeito, preto, pobre, velho, marginalizado que representava uma "grande ameaça a nossas vidas". 
De repente ele jogou a sacola violentamente no meio do corredor, jogou também o chapéu velho num canto, abriu os botões da camisa num vulto e começou a bater repetidamente no peito com os punhos fechados e a andar de um lado para o outro dentro do ônibus. 
Todos olhavam abismados, tentando entender o que ele dizia. Mas era inútil, ele apenas continuava a andar de um lado para o outro repetindo os movimentos, pisando nos mesmo lugares e olhando para cima. Golpeava tão pesadamente o seu peito que o barulho ecoava em nossos ouvidos, como o som de um coração que, apesar de velho, ainda insiste em bater.
Passado o susto inicial, mais uma vez pude ver a incrível capacidade que os seres humanos têm de se adaptar. Logo estavam todos pensando novamente em suas vidas, ignorando a aflição que trespassava pelos olhos daquele homem, indignado com alguma coisa que as suas palavras balbuciadas confusamente não permitiam o correto entendimento. O que importava pra mim é que ele estava revoltado, transtornado e ninguém naquele ônibus parecia se importar. Eram seus gritos silenciosos que ressonavam em minha mente e eu nada podia fazer, ou pelo menos não havia nada em que eu conseguisse pensar em fazer naquele momento. 
Aonde foi parar o respeito, a dignidade, a solidariedade e a fraternidade? Por que ignorar alguém que claramente precisa de ajuda? Será que a sua insensatez advinha da fome, do álcool, de alguma droga, de uma perda irreparável ou da miséria de sua vida, da falta de um teto para se proteger, de uma família?
Cerca de quatro pontos depois, ele recolheu seus pertences e desceu do ônibus calmamente, como se nada tivesse acontecido. A sua indignação grotesca cessou como mágica e a raiva que outrora estampava em seus olhos foi trocada pela tristeza, que arqueou dolorosamente os seus ombros. Saiu daquele ônibus derrotado, acho que por ninguém ter escutado nada do que ele disse, naquela sua linguagem diferente de quem vive pelas ruas, naquele seu mundo habitado por monstros e fantasmas.
Não sei o que houve com ele, não sei se está vivo ou morto. Nunca mais o vi. Mas aqueles olhos pretos, sofridos, jamais deixaram os meus pensamentos. Aquele homem louco, como alguns podem achar, me ensinou muito mais sobre humanidade do que qualquer livro ou teoria que eu já tenha lido ou conhecido. A este homem eu ofereço um muito obrigado!


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Café preto

A água na panela borbulhava raivosa. Ao longe as maritacas brigavam escandalosamente em torno de seus ninhos inacabados.  Suas mãos, já meio maltratadas pelo tempo, torciam as últimas roupas da bacia, seus ombros e costas doíam, mas ela deixara de se importar anos atrás. O cheiro do sabão lhe enjoava o estômago, porém, era necessário, tudo deveria estar impecável até a hora dele chegar...
Colocou o açúcar, o pó e enfim estava pronto mais um de tantos cafés, feitos exatamente às quatro da tarde, pontualmente, recorrentemente. O cheiro sempre despertava curiosidade, dizem que era sentido a quilômetros dali... Sua vizinha, ao voltar da novena, todas as terças-feiras, sempre comentava gentilmente “Nossa vizinha, que cheiro bom é esse?”, apesar de já saber, todas as vezes, que se tratava do café preto, amargo como a rotina que vivia.
Nesse dia, em específico, a vizinha praticamente convidou-se a entrar, não pelo café, é claro, o comentário dessa vez, ao contrário das outras vezes, só passava de um desculpa. O assunto que tinha ali era outro.
A vizinha começou uma conversa, nessa casa muito limpa, em meio ao cheiro do café, em uma determinada rua, como se começam todas as conversas em qualquer outra casa, de qualquer outra rua, mesmo que o café não fosse tão cheiroso como aquele. Disse que os dias andavam muito curtos, que já não havia mais tempo para os afazeres domésticos, que os tempos eram outros e que enfim, as mulheres não precisavam mais de seus maridos para viverem confortavelmente. Deveriam sim ir trabalhar, enfrentar o mundo lá fora e conquistar o que alguns chamam de independência.
Ela falava e repetia, como um rádio com defeito. Não se abalou com o olhar incomodado da anfitriã ao ouvir essas palavras, que a fizeram se lembrar de uma outra palavra que o padre usava com veemência aos domingos no ponto mais alto de seu sermão: blasfêmia. Como poderia uma mulher não receber seu marido em casa com menos do que roupas lavadas e passadas, um bom jantar e um cheiroso café?
Então, a vizinha avançou um pouco mais na conversa, que evoluiu de uma quase tese científica, dada a força que imprimiu a seus argumentos, para uma obesa fofoca. Para algumas pessoas falar da vida dos outros se torna uma arte muito prazerosa, para a vizinha essa prática social havia se tornado uma rotina, que ela repetidamente, ansiosamente, vivia.
A vizinha era uma solteirona. Dizem que quando jovem teve um grande amor, amava seu primo. Mas ele engravidou uma menina pobre, dessas criadas de fazenda grande, e teve que casar. Mudou de cidade e ela teve que conviver com esse amor rasgado, arrancado do peito, desde então. Dizem que quando não temos uma vida própria, encontramos conforto e emoção em novelas mexicanas, com seus dramas, choros e velas, e atrizes com uma quantidade excessiva de maquiagem. A vizinha sabia de tudo, tanto dos capítulos que já passaram quanto dos que viriam, tanto da novela quanto das vidas de todos naquele bairro, naquela pequena cidade interiorana, que todos os dias, às quatro horas em ponto, cheirava a café preto, forte como os braços das lavadeiras que torcem suas roupas.
Perguntou a dona de casa se ela conhecia bem as pessoas com que o marido dela trabalhava, perguntou se ela já tinha ouvido falar de uma tal Marta. Disse que nas rodinhas sociais do bairro não se falava em outra coisa: a Marta era amante de um homem casado. Disse que havia conversado com muitas mulheres ali do bairro sobre o assunto. Disse que não gostaria nem de imaginar o sofrimento de uma mulher que se descobrisse traída, ainda mais com mulherzinha de quinta categoria como a tal de Marta. "Marta”, disse a vizinha nervosamente, “nome de mulher desavergonhada!”.
A humilde dona de casa fez cara de quem realmente não fazia ideia do que a vizinha estava falando, muito menos do que pretendia com tudo aquilo... Que lógica havia em afirmar que o simples fato de uma mulher se chamar Marta já faz dela uma mulher desfrutável? Pergunta que a anfitriã, atenta às batidas cansadas do pêndulo do velho relógio da sala, logo ignorou. “Ele já deve estar chegando.”, pensou.
A mulher, farta de todo aquele falatório sem sentido, deixou a vizinha sozinha e foi por a mesa. Escutava a outra tagarelar incessantemente sobre uma camisa manchada de batom que foi achada na esquina de sua casa, do cheiro de papel velho que emanava de suas mangas compridas, que o tamanho da camisa condizia com a que um homem robusto usaria, alguém como o marido daquela dona de casa, por exemplo.
Enquanto isso, os garfos, ao encostarem nos copos de vidro, faziam um barulho engraçado, que fazia a mulher se lembrar de seus tempos de criança, quando ela sentava na soleira da porta da casa de seus pais, fechava os olhos e ouvia o apanhador de sonhos, apanhando os sonhos de tanta gente que vinham aos montes com o vento.
Lembrou de uma vez que saiu com seu marido e passou na feirinha. Viu um desses apanhadores de sonhos e pediu que ele comprasse pra ela, que ficaria muito feliz se pudesse fazer essa gentileza, mas ele disse que não, que era besteira e que ela não era mais menina nova pra ficar brincando. O incomum é que ela não se lembrou se ficou triste ou não quando ele disse aquilo. Dizem que o tempo cura todas as feridas, mas deixa as cicatrizes.
Ao longe já se ouvia o badalar do sino da Igreja, foi quando a vizinha tagarela e reumática, percebeu que já estava tarde e que o marido da anfitriã, não muito atenta às suas histórias, deveria estar pra chegar. Despediu-se rapidamente e virou a esquina sem olhar pra trás, ainda tinha muitas casas a visitar.
Já iam dar sete horas da noite e nada do marido chegar. “O que poderia ter acontecido? O cartório só fica a quatro quarteirões daqui...” pensou ela, já impaciente com a demora. O assado já esfriava em cima da mesa, o café aos poucos foi perdendo o seu cheiro forte, as roupas já não pareciam tão bem passadas.
Às sete e meia a dona de casa foi esperá-lo no portão, já imaginando que tragédia poderia ter acontecido. Então ouviu ao longe a voz do marido se despedindo de alguém. Enfim ele apareceu na rua, para o alívio de sua esposa, que o recebeu de braços abertos e com um sorriso aliviado no rosto. Perguntou o porquê da demora e de quem se despedia na esquina. Ele, aparentemente cansado respondeu furtivamente que hoje havia muito trabalho e que se despedia de um colega que vinha andando com ele.
O marido entrou apressadamente em casa e foi ao banheiro lavar as mãos para jantar. A mulher ainda ficou alguns minutos do lado de fora, admirando a lua que, na noite em questão, estava lindíssima. Dizem que se você olhar muito atentamente pra lua poderá ver São Jorge acenando pra você.
Dirigiu-se até a porta e, no momento em que estava prestes a fechá-la, sentiu um cheiro diferente. Perfume intenso e muito doce, como o cheiro das damas da noite em certas épocas do ano. Viu uma mulher bonita, de pernas e braços bem torneados, longo cabelo cacheado que caia sobre seu colo e costas. E que lindo vestido ela usava, um tecido bem leve, florido, que parecia cumprimentar a rua quando o vento o levantava.
Lembrou-se então de Marta. “Poderia ser a Marta, não poderia?”. Sentiu que não haveria homem que não se encantasse com ela. Imaginou que seu marido provavelmente ficaria tentado a sentir outro cheiro que não o do café, que às quatro da tarde, invadia as casas e praças, sem pedir licença, e levava com ele os suspiros das moçinhas apaixonadas.
Sentiu, de repente, um desejo de liberdade. Depois do jantar daquela noite e nos dias que se passaram, esse sentimento só crescia dentro dela. Mais uma Amélia que abrira mão de sua vida por seu marido, mais uma Amélia que diria sim para tudo que ele pedisse sem pestanejar e que agora imaginava uma vida fora daqueles portões cor de bronze que, inclusive, harmonizavam muito bem com as margaridas plantadas no pequeno jardim.
Depois de muitas terças-feiras sem parar para conversar, em uma tarde qualquer, de um dia qualquer, naquela determinada cidade, a vizinha novamente convidou-se a entrar, dessa vez, pelo silêncio incômodo que partia da casa. Chamou a mulher, a coitada, a traída, que parecia nem desconfiar de nada, mas ela não respondeu. O portão estava aberto. A curiosidade devorava suas entranhas. Tinha que entrar e ver o que estava acontecendo. Se alguém a repreendesse ela diria que entrou na casa sem ser convidada por preocupação. Dizem que as mentiras têm pernas curtas e cabeludas.
O som do nada continuava a incomodar os ouvidos da vizinha, muito mais acostumada com as algazarras da feira, da igreja e da mercearia, e as vezes com a algazarra provocada por sua própria voz, dentro de sua cabeça. A mesa não estava posta, as roupas estavam jogadas pela casa e o café... não, não havia café. A vizinha ficou com aquela cara muito típica daquele tipo específico de pessoa que acredita que sabe de tudo, mas repentinamente se depara com algo que não entende. “Onde estava aquela mulher afinal?”, pensou.
A mulher se foi, assim como se foram as fofocas a seu respeito depois de alguns meses que desapareceu, assim como se foram as esperanças de seu marido de um dia encontrá-la e tentar entender o que houve, assim como se foi o cheiro de café que habitava a cidade. 
Dizem que a mulher se tornou uma linda borboleta, daquelas que os amantes sentem no estômago sempre que se beijam ardentemente.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O caso do porta-malas

Sua cabeça latejava e lentamente ela foi abrindo os seus olhos. Após alguns segundos em que eles se acostumavam com a luz, apesar de pouca, ela se deu conta de que estava dentro de um porta-malas. Suas mãos e pernas estavam amarrados, havia uma venda em sua boca e cada osso de seu corpo doía como se pudessem se partir a qualquer momento. Após o sentimento de estranheza, um desespero tomou conta de sua alma, ela não fazia ideia de como tinha parado ali... queria gritar mas não podia, queria se mover mais estava presa, clautrofobicamente enclausurada em um porta-malas.

Ela podia ouvir a leve chuva que caía e ao longe o pavoroso grito de uma cigarra prestes a morrer. Sentia que passava por cima de uma estrada, provavelmente de chão, dado o cheiro de poeira e os estrondos repicados que as pedrinhas provocavam bem abaixo dela. 

Então, a pouca luz, que ainda passava pelas frestas da abertura de sua prisão, foi se apagando e ela começou a imaginar que horas seriam e se talvez alguém estaria procurando por ela. Talvez... talvez a senhora, síndica do prédio em que morava, afinal o aluguel do apartamento estava atrasado três meses, ou talvez a sua gata Marrie, que provavelmente estaria com fome, mas não, os gatos são independentes, ela pensou, Marrie deve estar procurando comida do lado de fora, apesar de não se lembrar se a janela ficara aberta ou fechada. Talvez alguém tivesse visto o que houve com ela, uma testemunha, e tivesse chamado a polícia, alguém de seu bairro que não tivesse medo dos traficantes ou dos assassinos que habitavam a região, alguém corajoso, como um príncipe encantado...

Porém, em meio a seus devaneios sem sentido, o carro parou abruptamente, ela sentiu a mudança do solo, andavam agora sobre o asfalto e o som de uma buzina, simplesmente ensurdecedor, fez com que ela se lembrasse da sua trágica situação. Pensou no trânsito, pensou que se talvez houvesse um acidente com o carro em que estava, que ela ficaria bem, talvez matasse o motorista, ou o ferisse, e quando a polícia chegasse ao local abririam o porta-malas e ela finalmente respiraria, mesmo que fosse por alguns instantes. Mas não, o carro continuou sua viagem, levando consigo os desesperos e esperanças de alguém, presa no porta-malas. 

Quando pequena, tinha o costume de questionar o porquê do nome das coisas, desafios etimológicos que a surpreendiam. Porta-malas era uma palavra muito simples, pois simplesmente nomeava um compartimento do carro que servia para guardar malas, mas não só malas, sacolas, instrumentos de trabalho, as compras do supermercado... e, atualmente, pessoas.

Havia um revólver carregado no banco do passageiro. As mãos do motorista estavam suadas, isso indicava seu nervosismo, não porque havia uma garota presa no porta-malas, mas porque se ele tivesse sofrido um acidente teria de pagar o prejuízo pelos concertos daquele carro, que não era dele. Mais prejuízos!!! Já não bastava os remédios que tinha que comprar pra sua filha aidética de cinco anos, como se não bastasse ter que trabalhar 14 horas por dia em uma fábrica de refrigerantes e ganhar quase nada de salário, como se não passasse as 10 horas que lhe restavam por dia praguejando contra a mãe da menina, que além de transmitir AIDS a própria filha durante a amamentação, ainda os abandonou.

Os médicos do hospital público disseram que o Brasil é um dos países mais avançados na disponibilização gratuita do coquetel, mas sempre que chegava aos postos de entrega, eles já tinham acabado. Às vezes conseguia um ou dois, mais não todos eles. É muito triste para um pai pobre, morador de periferia, que trabalha como um condenado, ter que ver sua própria filha morrer e não poder fazer nada. Mas dessa vez não, dessa vez com o dinheiro do sequestro eles iriam se mudar, ele iria abrir um comércio, mudar de nome e esquecer do passado. Preferiu nem olhar o rosto da garota no porta-malas, simplesmente o mandaram levá-la até o local combinado, simplesmente entrou no carro e dirigiu, a menina já estava lá, se a polícia o questionasse, diria que não sabia de nada, que era um trabalhador e não um bandido.

Apesar da hipocrisia, no fundo ele sabia que mesmo depois de pegar a sua parte, a menina não sobreviveria, mas como não seria ele o seu executor, como não participaria de seu calvário diretamente, preenchia a sua consciência com o pensamento de que a culpa não seria dele... quando adolescente ouvira alguém dizer que se alcançados os fins, os meios não importavam... ele considerava-se um meio.

A garota permanecia insolentemente pensativa. Nunca havia sido alguém que tomasse grandes decisões e quando as tomou se arrependeu. Nunca foi alguém forte, decidida, alguém que pudesse se salvar ou salvar alguém... ela tinha o costume de fugir. Tinha uma família abastada, de muitas posses, mas não suportava mais as cobranças de seus pais: seja mais simpática, estude mais, encontre um bom partido, faça faculdade de medicina, seja bonita, seja alguém.

Pelo costume de fugir das pressões que eventualmente surgissem, jamais teve muitos amigos, o mais próximo disso era algum vizinho que lhe emprestava uma xícara de açúcar, hábito de pedir que ela desenvolveu não porque faria efetivamente algum doce, mas simplesmente para ter algum tipo de contato com alguém. Na verdade, fez coleções de xícaras de todas as formas e tamanhos, e ao olhar para cada uma delas se lembrava das mãos gentis que entregavam o açúcar com gosto. Os invejava, os invejava tão fortemente que às vezes fingia ser um deles, sozinha em casa, se deparando com o olhar desconfiado de Marrie.

De repente, lembrou que uma vez assistiu a um desses seriados policiais, em que as vítimas de sequestro, quando dentro do porta-malas, conseguiam escapar chutando a maquinaria que envolvia os faróis traseiros. Pela primeira vez, tomou coragem e deu o primeiro chute, ainda muito leve e medroso. O segundo, já mais forte, começou a mover a peça, o terceiro a abriu e o quarto a arrancou com força da traseira do carro.

Enfim!!! Enfim o ar entrava e preenchia seus pulmões, muito fracos, quase sem vida ou esperança. Seus olhos arderam com a luz que os faróis coloridos que inundavam a via asfáltica provocavam.Ouviu algumas pessoas gritando, dizendo que havia um pé do lado de fora do porta-malas. Ao mesmo tempo o carro acelerou por alguns momentos, subitamente virou a direita, e parou no acostamento de uma estrada deserta, logo ao lado da rodovia, dessa vez, definitivamente.

O motorista desceu, desesperadamente checou se o revólver estava carregado, três vezes, suas mãos tremiam, seu coração explodia, seu cérebro fumegava por dentro, criando uma sensação insuportável. Pensou em fugir, pensou em gritar, pedir perdão, mas pensou em sua filha, pensou nos remédios e pensou na nova vida que ele havia sonhado pra si. Sabia que se fosse preso sua filha ficaria sozinha e morreria. Tomou coragem e dirigiu-se ao porta-malas. Viu o pé da moça pra fora, a primeira parte de seu corpo que ele viu, pensou que agora não haveria mais volta, não haveria mais escapatória, teria que matá-la.

A moça chorava e se lamentava por ter feito aquilo, sabia que se o motorista abrisse o porta-malas não haveria mais volta, não haveria escapatória, morreria, ali mesmo naquela beira de estrada.

O motorista abriu lentamente o porta-malas, já se sentindo um assassino, já se sentindo um pecador, condenado por Deus, que jamais conseguiria esquecer aquele horrível pecado. A moça já se preparava para o inevitável, de certa forma entendia que racionalmente matá-la seria o melhor a fazer, sabia que somente um milagre a salvaria. 

Quando o motorista olhou em seus olhos, já não parecia mais humano, apenas um assassino, sem nome, sem família, sem esperanças, a moça olhou de volta, sucumbindo àquele olhar gélido, imaginando aonde iria quando tudo aquilo acabasse.

Então, finalmente, um tiro. Um único tiro, seco e destruidor, apenas mais um som em meio ao caos do trânsito, que parecia ignorar os acontecimentos às margens de si, como uma máquina independente, feita de engrenagens frias e não pessoas. A moça fechou os olhos lentamente e já podia sentir o ardor do sangue pulsando lentamente pra fora de seu corpo, através de um buraco exatamente no meio de seu peito, e então, por incrível que pareça, se sentiu bem, sentiu a sua solidão, as suas mágoas indo embora junto com aquele fluido de vida. Lembrou de Marrie e percebeu que ela merecia alguém melhor que cuidasse dela, que fizesse mais carinho. Lembrou da síndica que provavelmente se aborreceria quando soubesse de sua morte, quanto dinheiro perdido! Percebeu que as xícaras não passavam de objetos inanimados, sentiu-se patética, porém, reconheceu em seu assassino, finalmente, um amigo. Um amigo que a livrou de sua infelicidade. 

Dizem que a cada vez que uma pessoa mata outra, é um pedaço de sua alma que vai junto com ela. Dizem que ninguém esquece o rosto daqueles infelizes que tiveram o seu bem mais precioso arrancado violentamente de si. Dizem que um assassino jamais se perdoa por continuar vivendo. Fim.
     

terça-feira, 20 de março de 2012

A Menina e a Rosa

Passava todos os dias, sempre muito apressada. Os rapazes, que já sabiam mais ou menos o horário em que ela passava ficavam ali sentados na porta, conversando, rindo e esperando. A vida dela tinha um quê de misticismo, apesar de todos conhecerem seu irmão ela mesmo só falava com algumas pessoas, muito específicas.

Não era como as outras meninas do bairro, que paravam para conversar com Deus e todo mundo. Às vezes, parecia que ela não podia parar ou tinha medo de olhar nos olhos dos outros, dos desconhecidos que ela encontrava todos os dias.

Nesse dia, ela se atrasou. Cerca de meia hora. Os rapazes já começavam a pensar que este era um daqueles dias em que ela não passava ali, muito raros na verdade. Foram recolhendo as cadeiras, jogando fora as latinhas de cerveja e também as últimas palavras. Até que, de repente, ela apareceu na esquina... com o mesmo jeito de andar, com os olhos fixos e determinados, o cabelo sempre solto, balançando conforme a brisa que sempre estava ali para lhe dar as boas vindas. Era incrível como o vento sabia a hora certa de bater nos seus cabelos, como os carros sabiam a hora exata de não passar para que ela pudesse caminhar entre as ruas, como o sol batia em seu rosto e deixava suas bochechas rosadas, como suas mãos delicadas tiravam a franja de seus olhos e voltavam ao seu lugar lentamente...

 Os rapazes, não se enganem, estavam ali para admirar e fazer uma das brincadeiras que mais gostavam: ver se conseguiam tirar alguma palavra de sua boca, mesmo que fosse a mais brava ou seca. Era tão raro ouvirem a voz da menina, tão raro que ela olhasse para eles, mesmo pelo canto dos olhos... Por isso, investiam em cantadas das mais variadas: "Você vem sempre aqui?", "Me dá uma chance!", "Quando você caiu do céu se machucou muito?" ou os tradicionais "Oi!" e "Oi gatinha!"... Era o máximo de criatividade que eles tinham e acreditavam realmente que poderiam alcançar seus objetivos com esse tipo de comportamento. Afinal, os meninos de 19 anos se acham irresistíveis!!

Mas nesse dia, como que por milagre, ficaram calados, mudos, quietos, apenas admirando a menina que passava. A menina segurava uma rosa carmim, que batia exatamente com o tom de batom que estava usando. Quem olhasse pra ela veria um quadro em preto e branco, com um forte tom de vermelho na rosa e na boca. 

Ela teria ganhado a flor de alguém especial? Talvez um namorado ou pretendente que, como eles, também ficava olhando ela passar, em uma outra rua, outra esquina, e tivesse enfim conseguido tirar algumas palavras de sua boca? Talvez ela daria o presente a alguém? Sua mãe? Uma amiga?

E foi com esses pensamentos que os rapazes ficaram estáticos em cima da calçada, como observadores de pássaros que só olham de longe e não podem fazer movimentos bruscos, pois correm o risco de perder a maestria do que veem em segundos.

Eles esqueceram do apelo sexual que antes os movia, não ficaram comentando sobre suas curvas, pernas, seios... a admiraram, pela primeira vez, talvez pelo que ela realmente era, sentiram como se a conhecessem há muito tempo, como se soubessem de seus segredos mais íntimos, como se pudessem pegar nas mãos da menina e andar por aí, sem um destino certo...

Neste dia, a menina tinha um leve sorriso no canto da boca e ao notar o silêncio incomum que vinha do outro lado da rua, olhou para os rapazes e pensou por um momento que talvez pudesse, pela primeira vez, olhar em seus olhos ou dizer algo... sentiu uma certa confiança, mas logo seu recato falou mais alto, então ela olhou pra frente e seguiu seu caminho, não se sabe para onde.