segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Homens ou macacos?


O que nos diferencia de meros animais? Talvez a nossa "racionalidade", a nossa "inteligência", a nossa "humanidade"... Mas e se formos colocados em uma situação em que assumimos o poder? Ou, ao contrário, em uma situação em que perdemos todo o nosso poder? O que resta da nossa humanidade? No filme "A Experiência", dirigido por Oliver Hirschbiegel e readaptado por Haley Sweet, um grupo de homens é escolhido para passar duas semanas em um protótipo de prisão estadual, sendo que alguns deles assumem a função de agentes penitenciários e outros assumem a função de prisioneiros, regidos por um sistema de regras penitenciárias, sendo observados por câmeras todo o tempo. Tudo isso como uma experiência científica, comportamental e psicológica que um grupo de cientistas anuncia nos jornais, dando como recompensa 14 mil dólares a cada cobaia.

A princípio, todos são submetidos a uma série de testes e perguntas, claramente para delinear seus perfis psicológicos, a partir daí, delimitando a função, ou o papel ideal a ser exercido por cada um, dentro do sistema inventado pelos cientistas. O que justifica, por exemplo, a escolha de um devoto, de um religioso para fazer o papel de agente penitenciário e de um não devoto para fazer o papel de prisioneiro, demonstrando que tipo de valor moral deve ser ensinado a um preso, valores morais e sociais amplamente pregados pela Igreja.

É criado, portanto, um sistema prisional disciplinar, que em muito lembra uma junção entre o sistema panóptico de vigilância e o sistema de regras auburniano, em que existem as figuras autoritárias, que devem garantir que as regras sejam cumpridas, no caso os agentes penitenciários, e as figuras "rebeldes", os prisioneiros que devem ser observados constantemente, devem ser adestrados, disciplinados, submetidos à ordem estabelecida pelos agentes e pelos cientistas. De certa forma, pode-se dizer que as câmeras representam o Estado vigilante, que estabelece as regras, porém se mantendo muito distante da realidade do sistema carcerário, inerte, encarando os prisioneiros como patologias que devem ser curadas ou esquecidas.

A "disciplina" não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas e procedimentos, como uma "física", uma "anatomia" do poder. Entre os diversos instrumentos disciplinares, pode-se citar a substituição do chamamento nominal dos presos por chamamentos numéricos, os horários estabelecidos para as refeições, a questão dos presos terem obrigatoriamente que comer tudo o que lhes é oferecido nesses momentos, a delimitação de tarefas para cada um dos presos, a vestimenta característica, não só dos presos como dos agentes penitenciários, a questão dos presos só poderem se dirigir aos agentes quando estes lhes derem a palavra, destruindo progressivamente a relação de camaradagem do começo da experiência e colocando no lugar humilhação e raiva.

Os presos simplesmente não seguem as regras e os agentes não conseguem impedir que seu poder, praticamente supremo, suba à cabeça. A partir do momento em que os agentes tornam as medidas disciplinares mais duras e violentas (os cientistas deixam a escolha dos próprios agentes a delimitação dessas medidas, contanto que fossem proporcionais à infração cometida), evoluindo de meras flexões para sérias agressões físicas e psicológicas, os prisioneiros também se tornam mais violentos e mais inconformados com os castigos abusivos. Até que o sistema entra em colapso, quando os presos conseguem se soltar e fazem um motim, motivado também pela morte de um dos prisioneiros durante um conflito com os agentes.

O filme se torna então uma grande guerra, sangrenta e violenta, em que os presos e agentes penitenciários só não se matam uns aos outros porque, enfim, a luz vermelha pisca e os portões do protótipo de penitenciária se abrem, indicando o fim da experiência. Incrivelmente, é como se todos abandonassem o papel que estavam interpretando e se dessem conta do que estavam fazendo, do que eram e no que se transformaram, como se percebessem o absurdo de sua própria selvageria.

Fazendo uma análise geral do filme, podemos ver o quanto o nosso sistema carcerário atual é falho e incompetente em sua função de ressocializar o preso, pois muitas vezes ele sai de lá muito pior do que quando entrou; na atual Teoria do Crime, sendo a Sociedade Geral, representada pelo Estado, a principal vítima de todos os crimes cometidos pelos cidadãos, a pena existe não para apagar um crime, mas para transformar um indivíduo, o que obviamente não acontece.

Foucault diz que a evolução do sistema carcerário fez com que o Estado, de forma geral, abandonasse a aplicação de castigos corpóreos como os suplícios, porém o que se vê é uma realidade ainda muito brutal, em que os presos são submetidos não só a agressões verbais, mas também físicas, perdem suas identidades, sua auto-gestão, tudo aquilo que os torna humanos, partindo do princípio de que a sociedade deve ser protegida a qualquer custo e que quem não se encaixa deve ser devidamente punido.

Segundo Baltard, as prisões são "instituições completas e austeras", como um aparelho disciplinar exaustivo que deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, através da delimitação de hierarquia, de regras disciplinares claras e precisas, através do isolamento, do trabalho, do silêncio e da resignação, porém os grandes teóricos da "teoria da prisão", do século XVIII, se esqueceram que são pessoas de verdade que põem o sistema para funcionar, pessoas que cometem erros, que se deixam levar pela ambição e pelo poder, numa situação agravada pela omissão do Estado, levando o sistema prisional ao caos, conforme é metaforizado no filme.

Foucault ainda ressalta que:

"O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII: mas há também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral, mas à docilidade automática."

E, partindo dessa ideia, ele diz que há um "desafio político global" em torno da prisão, que não se trata de saber se ela é corretiva ou não, ou de quem terá mais poder dentro e fora de seus muros; na verdade ele está entre a alternativa prisão ou algo diferente disso. É muito fácil perceber que essas complexas relações de poder, corpos e forças submetidos por diversos "dispositivos de encarceramento", discursos abstratos em contradição com a realidade carcerária ainda levarão a sociedade a muitas discussões e a muitas batalhas.

O prisioneiro 77, enquanto figura bastante influente ao longo do filme e o preso que mais sofre retaliações, até por ser o mais "indisciplinado" segundo os padrões da experiência, é questionado por um dos colegas de quarto, quando estão indo embora pra casa, se ele ainda acredita que os seres humanos são mais evoluídos que macacos. Ele diz que sim, pois os seres humanos têm a capacidade de mudar.


Bem blogueiros, esse texto foi escrito por mim no semestre passado, como parte da nota da matéria Execução Penal e Administração Prisional na Faculdade de Direito.

Eu postei esse texto aqui, porque assim eu já mato muitos coelhos com uma caixa d'agua só (kkkk eu sei que o ditado não é assim, mas fica mais engraçado, porque não faz o menos sentido!).

Primeiro divulgo o Filme "A Experiência". Eu assisti as duas versões, ou seja, a alemã, que é a original, e a norte-americana. Particularmente, preferi a norte-americana, até pela qualidade de imagem e pelos atores. A baixo as duas capas do filme:



 Em seguida eu já indico também, pra quem se interessar, o Livro "Vigiar e Punir" de Michel Foucault, que trata da história das prisões, dos suplícios corporais, da evolução do conceito de crime e punição, do estudo dos sistemas de vigilância e disciplina... um livro completíssimo e muito importante para quem deseja entender muito mais sobre o assunto.

Enjoy :)

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